REUMATISMO
Isidio
Calich é médico reumatologista, professor da Faculdade de Medicina da
Universidade de São Paulo.
Tradicionalmente, reumatismo é considerado uma doença das articulações,
músculos, ligamentos e tendões, de caráter não traumático, que acomete pessoas
mais velhas.
Na verdade, a palavra reumatismo serve para designar inúmeras
enfermidades, mais de duzentas. Provavelmente, as mais conhecidas são a artrite
reumatoide e a artrose, ou osteoartrose, que afetam cartilagens e articulações
e provocam dor, deformação e limitação de movimentos. No entanto, as doenças
reumáticas acometem não só as articulações e cartilagens, mas também órgãos
internos, como coração e rins e, para a grande maioria delas, existem
fundamentos imunológicos bem definidos.
Descritos por Hipócrates, séculos antes de Cristo, os diversos tipos de
reumatismo podem manifestar-se em pessoas de qualquer idade: crianças, jovens,
adultos e idosos. Foi só nos últimos anos, entretanto, que surgiram drogas
capazes de revolucionar o tratamento clássico da doença feito até então apenas
com anti-inflamatórios.
CONCEITUAÇÃO
Drauzio – Como você define o reumatismo?
Isidio Calich – A palavra reumatismo vem do
grego (rheuma), mas seu significado foi-se modificando com o passar do tempo.
Atualmente, quando se fala reumatismo, estamos nos referindo a um grupo
bastante extenso de doenças que acometem não só as articulações, músculos,
ligamentos e tendões. Estamos nos referindo também a doenças em que o sistema
imunológico está envolvido e atacam órgãos como cérebro, rins, coração, por
exemplo.
Portanto, por englobar grupo tão grande de enfermidades, é muito
importante caracterizar o tipo de reumatismo a fim de propor tratamento efetivo
e adequado.
Drauzio – Mais ou menos quantas doenças estão classificadas
como reumatismo?
Isidio Calich – Mais de 250, 300 doenças
diferentes. Algumas acometem primeiro os órgãos internos. Um exemplo é o lúpus
eritematoso sistêmico que, às vezes, começa pela inflamação do rim. Nesse caso,
os primeiros sintomas são alterações na urina (presença de sangue e de
proteína). Depois, o quadro vai se completando (as juntas incham, inflamam os
músculos) e a doença adquire características reumáticas.
Outro exemplo é a febre reumática, doença que acomete principalmente
crianças e pode começar pelo coração e não pelas articulações. Aliás, quanto
menor a idade da criança, maior a probabilidade de comprometimento cardíaco.
Portanto, embora não seja fácil fazer o diagnóstico exato desde o
início, atualmente, podemos contar com exames laboratoriais e um conhecimento
maior das doenças, o que torna possível caracterizar e tratar corretamente cada
tipo de reumatismo.
ARTRITE REUMATOIDE e ARTROSE
Drauzio – O reumatismo pode acometer articulações,
músculos, ligamentos e tendões. Um dos principais sintomas da doença é a dor.
Todavia, dores articulares podem ocorrer por diversas razões. Às vezes, a
pessoa pisa de mau jeito ou exagera nos exercícios, e as articulações ficam
doloridas. O que diferencia a dor reumática da dor ocasional provocada por
traumatismos ou pela prática inadequada de exercícios?
Isidio Calich – Na verdade, nos dois casos, a dor
não é muito diferente. Por isso é importante levantar a história clínica do
paciente para determinar se a origem da dor é mecânica ou inflamatória. Se a
pessoa torceu o tornozelo, que inchou e continua inflamado, obviamente a causa
é mecânica e a dor é provocada por inflamação, porque líquido se formou dentro
das articulações. Em outras palavras: a membrana sinovial que forra o interior
da articulação começa a produzir um líquido que determina o processo
inflamatório. Nos casos de reumatismo, a dor é causada por inflamação sem
história de entorse, traumatismos ou esforço repetitivo.
Drauzio – Talvez a doença reumática mais conhecida
seja mesmo a artrite reumatoide. Especialmente, nas pessoas de idade, essa
doença provoca deformidades nas articulações e as mãos adquirem características
típicas do reumatismo, que não é uma doença apenas dos idosos…
Isidio Calich – Reumatismo é uma doença que
acomete crianças, adolescentes, jovens, adultos e idosos, e existem tipos
preferenciais de acordo com a idade. A febre reumática, por exemplo, acomete
principalmente crianças. O lúpus eritematoso sistêmico, uma doença autoimune,
em geral se manifesta no sexo feminino, durante a puberdade, quando ocorrem
alterações hormonais em virtude da transformação do sistema endócrino. Já nas
pessoas de mais idade, os tipos predominantes são, sem dúvida, a artrose e a
artrite reumatoide.
Drauzio – Qual a diferença entre artrose e artrite
reumatoide?
Isidio Calich – Em geral, a artrose aparece
depois dos 50 anos e evolui progressivamente a ponto de, aos 80 anos, todas as
pessoas (100%) terem uma alteração da cartilagem que, no decorrer dos anos, vai
deformando as articulações. Por que algumas pessoas sentem dor e outras não,
não é bem conhecido. Há quem descubra que tem bico-de-papagaio na coluna,
quando tira uma radiografia por outro motivo qualquer. Do mesmo modo, pequenas
deformidades nas mãos (nódulos de Heberden) próprias da artrose podem provocar
muita dor ou dor nenhuma dependendo do paciente.
Já a artrite reumatoide é uma doença autoimune que se caracteriza por
inflamação que pode provocar também pequenas deformidades nas mãos. Como o
sistema imunológico está envolvido no aparecimento da doença, de acordo com as
características genéticas do indivíduo, sua intensidade varia para mais ou para
menos.
TRATAMENTO
a) Anti-inflamatórios e cortisona
Drauzio – Quais os primeiros remédios usados no
tratamento do reumatismo?
Isidio Calich – Há cerca de 50 anos, os
anti-inflamatórios foram introduzidos no tratamento do reumatismo. A cortisona começou
a ser utilizada em 1948, 1950, seguida pelo sal de ouro, este último indicado
para o tratamento da artrite reumatoide. Como se vê, são remédios antigos, mas
que apresentavam muitos efeitos colaterais, especialmente porque não se
dominava o conhecimento exato de como empregá-los com adequação.
No caso dos anti-inflamatórios, apesar de a ação dessas drogas ser, em
geral, muito semelhante entre si, durante anos, os laboratórios procuraram
encontrar novas fórmulas que trouxessem mais benefícios e menos efeitos
adversos. Já existem, por exemplo, medicamentos que atacam menos o tubo
digestivo. No entanto, às vezes, ainda surgem problemas. Recentemente,
atribuiu-se ao uso contínuo de um anti-inflamatório a maior incidência de
comprometimento cardíaco e ele foi retirado do mercado.
Drauzio – Qual é o princípio básico da ação dos
anti-inflamatórios?
Isidio Calich – Basicamente, eles inibem a
produção de prostaglandina, um mediador da inflamação responsável pelo
aparecimento do líquido que se forma com a inflamação. Inibindo a produção de
prostaglandina, há menor transudação de células e de líquido para dentro da
articulação.
Drauzio – O que é transudação?
Isidio Calich – Na doença inflamatória da
articulação, os vasos sanguíneos dilatam, o que permite a passagem de líquido e
células para dentro da articulação, ou seja, a transudação de líquido e células
para dentro da articulação.
Drauzio – O mecanismo de ação dos derivados da
cortisona é o mesmo dos anti-inflamatórios?
Isidio Calich – Não, eles atuam em diferentes
níveis da inflamação. A cortisona inibe outras etapas do processo inflamatório.
Na realidade, ela é o mais potente anti-inflamatório que existe.
Drauzio – A cortisona revolucionou o tratamento das
doenças reumatológicas.
Isidio Calich – A história da cortisona é
interessante. Quando foi desenvolvida, antes de 1950, os primeiros a utilizá-la
acharam que tinham encontrado uma forma de curar os pacientes com doenças
reumáticas. Sem o conhecimento exato de como deveria ser prescrita, empregavam
doses muito altas e os sintomas desapareciam completamente. Aliás, como
acontece ainda hoje, se doses muito altas forem ministradas, o doente tem a
impressão de que realmente está curado. Com o tempo, porém, ele se torna
resistente à cortisona e passa a demandar doses cada vez maiores. Acontece que
os efeitos colaterais da cortisona podem ser graves: osteoporose, catarata,
fraturas precoces, hipertensão arterial, diabetes só para citar alguns deles.
Portanto, cortisona mal utilizada pode causar em problemas sérios. Aquilo que
se admitia como cura em 1950, hoje se sabe que é apenas um anti-inflamatório
potente que pode e deve ser usado quando a inflamação é intensa e retirado o
mais rápido possível para evitar efeitos adversos.
b) Imunossupressores
Drauzio – No tratamento das doenças reumatológicas,
os anti-inflamatórios, de um lado, e os derivados da cortisona, de outro, eram
as armas de que dispúnhamos até recentemente para inibir o processo
inflamatório. O que há de novo e eficaz nessa área?
Isidio Calich – Entre o uso
de anti-inflamatórios e da cortisona e os remédios de última geração, foram
introduzidos os moduladores da inflamação, ou seja, drogas que inibem a
produção de citocinas pelos linfócitos, as células mais envolvidas no processo
inflamatório. Essas drogas impedem que as citocinas atuem levando à progressão
da doença.
Esses imunossupressores clássicos, drogas que diminuem a resposta
imunológica e, consequentemente o processo inflamatório, também são usados no
tratamento de neoplasias, em câncer. Porisso, o paciente se assustava – e até
hoje se assusta -, quando o remédio é indicado. “Mas, esse remédio
minha vizinha que tem câncer está tomando. Eu também estou com câncer?”,
pergunta.
Na verdade, as doenças autoimunes e as doenças imunológicas têm certa proximidade
com as doenças neoplásicas quanto às bases, embora percorram caminhos
diferentes. No entanto, com o uso de quimioterápicos, em doses mais baixas, sem
nenhum dos efeitos colaterais que podem ocorrer no tratamento das neoplasias,
conseguimos controlar as doenças reumáticas.
c) Outras drogas
Drauzio – Que outras drogas podem ser usadas no
tratamento dos reumatismos?
Isidio Calich – O avanço da engenharia
genética e o melhor conhecimento das doenças permitiram a formação de compostos
mais específicos para o tratamento do reumatismo. Por exemplo, sabe-se que um
mediador da inflamação chamado TNF (fator de necrose tumoral) produzido pelas
células agrava as doenças inflamatórias, especialmente alguns tipos de
reumatismo. Drogas que inibem a formação do TNF têm mostrado resultados muito
bons para a maioria dos pacientes. É importante dizer, porém, que não
representam a cura para a doença, mas uma forma de controlá-la melhor. Isso
precisa ser bem explicado para o paciente que vai utilizá-las.
Como o tratamento é longo e elas são extremamente caras, hoje, num país
como o nosso, é um problema fazer uso delas de maneira ampla. Então, resta
seguir a conduta convencional. Às vezes, é possível controlar a doença com
drogas anti-inflamatórias associadas a um modulador da inflamação. A
cloroquina, por exemplo, indicada para tratamento da malária, funciona bem nas
doenças reumáticas. Se os resultados não são satisfatórios, introduzem-se os
imunossupressores. Já que 80%, 85% das doenças reumáticas podem ser controladas
com esses medicamentos, é um erro introduzir drogas extremamente modernas e
caras sem experimentar a resposta às drogas convencionais. Agora, quando a
doença é muito agressiva e não se consegue controlá-la dessa forma, tem que se
considerar o emprego desses agentes biológicos que representaram grande avanço
no tratamento das doenças reumáticas.
Drauzio – Deixando de lado o preço desses
medicamentos, qual foi o impacto que representaram na evolução das doenças
reumáticas?
Isidio Calich – Estamos usando essas drogas
desde que surgiram, em 1999, e realmente elas mudaram o curso de certas
doenças, por exemplo, da artrite reumatoide, uma vez que favorecem a regressão
dos sintomas mais intensos e impedem a formação de erosões, ou seja, impedem a
destruição da cartilagem e do osso, o que leva a deformidades.
Trabalhos têm mostrado que usadas a longo prazo essas drogas detêm o
avanço da artrite, não em todos, mas em número significativo de pacientes.
Drauzio – Alguns reumatologistas defendem que as
drogas mais modernas deveriam ser usadas desde o início, porque mudam a
evolução natural da história da doença.
Isidio Calich – No último congresso realizado
em Veneza, no final do semestre de 2005, foram apresentados vários trabalhos no
tratamento da “muito precoce artrite reumatoide” (anteriormente a classificação
começava em “artrite reumatoide precoce”), isto é, antes das manifestações da
doença. Feito o diagnóstico, a proposta é iniciar o tratamento com essas drogas
caras, mas ainda não existem dados que comprovem se realmente trazem benefícios
em termos de resultados futuros. Não resta dúvida, entretanto, que o impacto
econômico será um desastre, se considerarmos a hipótese de utilizá-las no
Brasil, onde a população com artrite reumatoide é de 2,5 milhões, 3 milhões de
habitantes.
Drauzio – Na verdade, o preço dessas drogas torna
sua utilização inviável no mundo inteiro, não só no Brasil.
Isidio Calich – Esse é um aspecto importante a
ser levado em conta. Além disso, é preciso reforçar a ideia de que existe boa
resposta ao tratamento correto realizado com as drogas clássicas. Portanto,
primeiro, deve-se tentar o esquema convencional adotado em qualquer país do
mundo. Se o paciente não responder, aí então médico e paciente devem conversar
sobre a utilização das novas drogas.
fonte: Varela, Draúzio, médico.
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