sexta-feira

TRADIÇÃO E FUNDAMENTO É A MESMA COISA?

* Iyá Klau de Sapatá
Fundamento: “ alicerce; base; sustentáculo; apoio;razão; prova; educação; primeiros rudimentos de uma arte ou uma ciência”
Tradição: “ato de entregar; ou de transmitir; transmissão oral de fatos históricos; lendas, de idade à idade;de geração à geração; memória; recordação”
Eu escuto; “Ah, as coisas evoluem” e isso me arrepia, e apavora! Como assim!?  As coisas evoluem!?  O que isto quer dizer!?
Respondo: nada, pois a Tradição é Tradição e não nos compete mudá-la ou contradizê-la.. Se não concordamos com algo desta Tradição a qual seguimos, devemos abandoná-la, devemos deixá-la de lado e sermos honestos conosco mesmos e com os outros e, principalmente, com a própria Tradição.
Exemplifico: se você é do Batuque e não admite o sacrifício, (apanijé=matar para dar de comer), palavra que vem da junção de duas palavras latinas sacrum (divino, sagrado) e officium (dever, serviço, cortesia, ocupação), ou seja, um “dever sagrado” com o qual não tem acordo, você deve abandonar o Batuque.
A mesma situação se deve à Kimbanda, se você não concorda com o sacrifício de animais não continue nela. Em ambos os casos você pode, muito bem, ir para a Umbanda que não sacrifica animais (em que pese haver algumas linhas de Umbanda que sacrificam animais, como a Omoloko). Assim, você estará sendo verdadeiro e não abandonando a Tradição.

Escuto muito:” mãe, fulano ou sicrano, é de onde? Quem são seus Babás ou Yás?, eu respondo não sei! Tem aumentado, oriundos do abandono da Tradição a proliferação de “Sacerdotes” e “Sacerdotisas” autodeclarados, que não passaram pela experiência e formação de um lugar de culto afro-brasileiro, que não possuem a preparação adequada e que resolvem abrir sua Casa, mesmo não tendo nenhuma condição para isso.
Como não têm experiência, nem mesmo base para exercerem o sacerdócio, começam a enxertar coisas (principalmente de livros de outros enxertadores, nos quais se baseiam). Como inserem assuntos que agradam ao público que não tem conhecimento e feitura, este passa a seguí-lo, tendo-o como pessoa “iluminada” e capaz de conduzi-los por um caminho espiritual. Ledo engano! São cegos conduzidos por outro cego (sem nem uma bengalinha para ajudar!)

Muito pior são aqueles que se acreditam “mestres” ou “feitores” que se arvoram de um conhecimento iniciático que não possuem, pois não passaram por nenhum rito iniciatório e se propõem a introduzir pessoas naquilo em que não foram iniciados. Acreditam, piamente, que possuem uma “autorização do astral” para fazerem o que bem entendem. Isto é um acinte, que afronta totalmente a Tradição.

Não digam o que não sabem!

Um sacerdote ou sacerdotisa, não deve enganar ao seu semelhante acenando com conhecimentos que não possui. E jamais dizer o que não sabe, ou seja, passar ensinamentos incorretos ou que não tenham sido transmitidos pelos seus mestres e mais velhos ou adquiridos de formas legítimas. É necessário o conhecimento verdadeiro para a prática da verdadeira religião. Quem abusa da confiança do próximo, enganando-o e manipulando-o através da ignorância religiosa, sofrerá graves conseqüências pelos seus atos. A natureza se incumbirá de cobrar os erros..

Não façam ritos que não saibam fazer!

Não se podem realizar rituais sem que se tenha investidura e conhecimento básico para realizá-los. Não se pode fazer aquilo que não sabe ou que não aprendeu.
Minha avó, me dizia, séria, da minha Nação, o  Jejê do RS: “ orelha não passa cabeça, minha filha!”, agoniré, digo eu.

Não desrespeitem os mais velhos, a sabedoria está com eles.

Deve-se respeitar e tratar muito bem aos mais velhos, principalmente os mais antigos nos cultos e religiões afro-brasileiras. O respeito aos mais velhos é um dos principais fundamentos de uma religião onde, reconhecidamente, antiguidade é posto. Faltar-lhes com o devido respeito e atenção é como lhes retirar o bastão em que se apóiam.
Aquele que sabe respeitar, acatar e amar aos seus mais velhos, sem dúvida receberá o mesmo tratamento quando também caminhar apoiado no seu próprio bastão. Os mais velhos, pelas experiências vividas, representam verdadeiros mananciais de sabedoria onde cada um deve procurar beber um pouco, saciando a sede de saber.
Os livros sagrados, são eles, cujas páginas devem ser lidas com paciência e carinho. Religiões que, durante séculos incontáveis, tiveram seus fundamentos transmitidos oralmente, valorizam sobremaneira, aqueles que são depositários destes conhecimentos. Um velho, por mais obtuso que possa parecer à primeira vista, sempre terá algo, obtido nos longos anos vividos, a ensinar. Devemos lembrar sempre que, se antigüidade é posto, saber é poder!

Como se pode ver, o afastamento da Tradição e do Fundamento enfraquece a tudo e a todos. Se, por algum motivo, você não concorda com algo que se pratica em sua Casa ou que se faça em seus ritos e cerimônias, saia, encontre outro lugar tradicional, diga-se, para continuar seu trabalho. O que não se pode fazer é sair e inventar o seu próprio sistema e considerá-lo melhor e mais “evoluido” que o anterior e começar uma vida sacerdotal sem nenhum preparo para tanto. Fiquem atentos, Diplomas de Sacerdote não habilitam ninguém a exercer o Sacerdócio, para além da formação acadêmica, somente anos de experiência e dedicação a/em uma Casa de Tradição, aprendendo no dia a dia, habilitará alguém a ser, de verdade, um Sacerdote, ou uma Sacerdotisa.. 

Referências bibliográficas:
ARALDI, C. L.. Para uma caracterização do niilismo na obra tardia de Nietzsche. São Paulo: FFLCH/USP, Grupos de Estudos Nietzsche, Cadernos Nietzsche nº 5, p. 75-94, 1998.

AURELIANO, Waleska de Araújo. Espiritualidade, saúde e as artes de cura no contemporâneo. Tese (doutorado) – Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Filosofia e Ciências Humanas.
Lei n° 12.131, 29/junho/2004.
Publicado no Jornal Raízes do Axé, 2013 - edição de Julho

Um comentário:

Fabiula Ayobami Martins disse...

Ótimo texto, Iyá Klau
Concordo plenamente com a senhora, não é a religião que deve se adequar as pessoas, mas sim nós que temos que nos adaptarmos a ela. A invenção e os modismos acabam por desestruturar o nosso culto, porque o descaracteriza fazendo com que muitas coisas se percam, além de nos enfraquecer como grupo. Perde- se muito tempo discutindo diferenças e “marmotagens” que se proliferam por aí e poucos se preocupam em ir ao cerne das questões que realmente interessam ao povo de axé, como visibilidade e respeito aos nossos direitos, preocupação ambiental e perpetuação da nossa história.
Nossa religião é coletiva, faz parte do âmago do africanismo a ancestralidade, a família, a raiz. Não para arrotar descendência, como vejo muitos fazerem, mas porque para nós esse sentido de linhagem, denota caminho, sequência de algo muito maior, que é o que cultuamos, os nossos Orixás. E isso não se aprende sozinho, ninguém se faz sozinho ou na mentira . Mas hoje todos querem ser pais, não aceitam se subordinar ( o que é bem diferente de submissão), querem ensinar aquilo que não tiveram paciência para aprender...
Evolução aceitável é sair do chão batido para um soalho de madeira ou cerâmica, poder bater os tambores às vinte horas ao invés da meia noite, poder sair na rua de axó sem ser apedrejado ( o que é comum na região de POA, mas que no interior é quase um ato criminoso perante a sociedade preconceituosa)...
Evolução é ver o povo de axé discutindo a relevância da sabedoria ancestral que nós carregamos e sua aplicação em benefício de toda a sociedade, é usarmos como a senhora diz, do nosso axé de fala e deixar saltar de dentro nos nossos terreiros a força calada e abafada por tanto tempo de intolerância.
Mas tudo que estiver da porta de nossos pegis para dentro, das nossas esferas ou tronqueiras de Quimbanda, está ali para ser perpetuado, mantido da forma mais original possível, nossos fundamentos, nossas tradições, ou corremos o risco de perdermos nossa identidade enquanto segmento religioso, para virarmos folclore, exotismo, espetáculo cultural atraente aos olhos, mas raso de significado.
Obrigada pela oportunidade de reflexão e que os Orixás e nossos ancestrais nos abençoem-nos com muita força e saúde
Abração
Fabiula de Yemonja