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O Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana



Verônica Lemos de O. Maia*


A Lei 10.639, de 2004, institui Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Determina também a inclusão da Educação das Relações Étnico-Raciais nas instituições de ensino superior, nos conteúdos de disciplinas e atividades curriculares dos cursos que ministram e o tratamento de questões e temáticas que dizem respeito aos afro-descendentes.

A meta dessa Lei é promover a educação de cidadãos atuantes e conscientes no seio da sociedade multicultural e pluriétnica do Brasil para buscar relações étnico-sociais positivas à uma nação democrática.
Os objetivos da Educação das Relações Étnico-Raciais são a divulgação e produção de conhecimentos, de atitudes, posturas e valores que eduquem cidadãos quanto à pluralidade étnico-racial, tornando-os capazes de interagir e de negociar objetivos comuns que garantam a todos o respeito aos direitos legais e a valorização de identidade. E também, a valorização das raízes africanas da nação brasileira, ao lado das indígenas, européias, asiáticas e reconhecimento da história e da cultura dos afro-brasileiros.
A Lei recomenda a obrigação dos sistemas de ensino de proverem condições materiais e financeiras com materiais didáticos necessários para tornar práticos seus preceitos. E indica movimentos civis organizados e instituições que possam ser consultados sobre conteúdos e metodologias úteis para a aplicação da Lei. Ela reafirma uma posição de combate ao racismo e à discriminação, de acordo com a nossa Constituição.

Para qualquer educador que tenha juízo e seja realista, essa Lei significará principalmente um chamado ao trabalho, pois sabemos que o Estado ainda não poderá prover o sistema de ensino com os meios necessários para dar plena eficácia à Lei. Pode até parecer difícil, à primeira vista, saber como e por onde começar. Mas, diante da montanha de fatos, personagens e circunstâncias históricas que têm sido negligenciados como conhecimento ao longo da história da Educação no Brasil, essa dificuldade é só aparente. Ao começarmos a tratar do tema vamos descobrir um outro país.

A história do Brasil e a formação do povo brasileiro foram de tão reduzidas a esquemas simplificados no dia a dia das escolas que nossos alunos chegam a terminar o Ensino Superior sem conhecer a História do Brasil. Nada, ou quase nada, estudamos sobre a política portuguesa de povoamento da colônia, que estimulava a mestiçagem para acelerar a ocupação das terras; ou sobre a resistência indígena ao formato hierarquizado das populações dominadoras; ou sobre a política de estado praticada por alguns reinos africanos que institucionalizaram a venda e a exportação de escravos negros; ou sobre a força antiabolicionista dos republicanos no Brasil. Isso simplesmente não é visto nas escolas. Repetimos expressões carregadas de significado histórico sem nem suspeitarmos disso, como aquela que diz que algo é "para inglês ver" e que se refere à burla da ordem baixada pelos ingleses de proibição do tráfico negreiro.

Às vezes estamos muito próximos de referências históricas importantes e não percebemos, nem tampouco nos alertam para isso na escola. Quando ouvimos O Guarani, de Carlos Gomes, na abertura da Hora do Brasil, por exemplo, é sem saber que o nosso mais conhecido compositor erudito era neto de uma escrava fôrra. Também não nos damos conta de que o nome Rebouças que batiza viadutos e avenidas nas maiores cidades brasileiras homenageia o sobrenome de uma ilustre família de políticos baianos negros, do século XIX, cujos membros foram importantes engenheiros: os irmãos André e Antônio Pereira Rebouças Filho, construtores de ferrovias e obras de grande porte.

Conhecer melhor sobre os afro-descendentes que fogem ao estigma da escravidão mais do que saciar curiosidades, nos ensina que, desde cedo, esse brasileiros impuseram, com sua existência, o fato de que a cor jamais os condenou à inferioridade intelectual. Apesar do ambiente que lhes era desfavorável eles alcançaram admiração e respeito assim como muitos outros que lutaram pela conquista de seu espaço.

O que vamos encontrar na busca de fazer a Lei 10.639 ser colocada em prática são personalidades, revoltas, movimentos relevantes na História do Brasil cujas origens negras foram escamoteadas, omitidas e até veementemente negadas pela ideologia de valorização do "branqueamento" de afro-descendentes que prevaleceu até recentemente na visão eurocêntrica praticada no Brasil.

Nas palavras do antropólogo Marcel Mauss: "o escravo não tem personalidade. Não tem corpo, não tem antepassado, nem nome, nem cognome, nem bens próprios. O escravo, entendido como corpo sem persona é, por definição, o próprio vazio social."
[1]

Destituído da condição humana, o escravo tornou-se invisível como pensamento e como sentimento. Falar de cultura negra afro-descendente no Brasil, por muito tempo, foi falar do passado e da escravidão. Sobre as atrocidades da escravidão ouvimos muito, pois felizmente elas têm sido amplamente reconhecidas e divulgadas. Por outro lado, pouco sabemos sobre a resistência, a sofisticação, o combate à exploração, à segregação, à discriminação social. São pontos altos na história e na cultura brasileiras e merecem que os conheçamos. É aqui que todas as alternativas estão em aberto para os educadores a partir da Lei 10. 639.

Se no Brasil não fomos educados como uma nação multicultural e pluriétnica, precisamos concentrar esforços para ampliar o olhar para além do negro escravo e reconhecer o valor daqueles afro-descendentes em âmbitos como a literatura, a música, as artes cênicas, as artes plásticas, as ciências, a medicina, o jornalismo, a diplomacia, a guerra, a política, a religião. É o conhecimento da história real que, enfim, ainda precisamos resgatar. Há dezenas de personalidades, passagens históricas e obras relacionadas à cultura afro-descendente que, se conhecidas, mudarão a perspectiva que temos sobre o povo brasileiro e que foram construídas com explícita parcialidade e má fé pela historiografia oficial. A Lei 10.639 nos oferece um caminho possível para sairmos dessa situação e lançarmos um olhar positivo sobre a nossa herança afro-descendente.

O historiador e romancista Joel Rufino dos Santos, no prefácio de A mão afro-brasileira – Significado da contribuição artística e histórica
[2], questiona:

O que sucederá – ponhamos como hipótese – se um grupo de pesquisadores recensear criteriosamente a produção da mão, do cérebro e da alma negras na construção da civilização brasileira, exibindo como negro quem negro foi?
Não só tornará o negro irremediavelmente visível, alçando-o a representante do país, ao lado do branco, como contribuirá para uma nova definição de Brasil, convincente para as gerações atuais e mais adequada ao nosso ingresso no século XXI."

Mas não nos iludamos esperando que outros esquemas prontos cheguem até nós. Precisamos buscar referências, pesquisar, demandar, estudar, perceber o nosso entorno, ir além dos livros didáticos, observar e ouvir a expressão da vida e da cultura nas várias formas em que ela se apresenta em nosso meio. Os afrodescendentes criaram ativamente o ser brasileiro em sua resistência à escravidão. Ao olharmos a História do Brasil com essa perspectiva, estaremos praticando uma ação afirmativa para todos os cidadãos brasileiros.

* Verônica L. O Maia é graduada em Antropologia pela Universidade de Brasília; especialista em Arte, Educação e Novas Tecnologias. Atua como consultora para elaboração de projetos para ongs, artistas, empresas.
Da redação: Procuramos, procuramos e achamos uma voz feminina sobre a História da África! Boa leitura à todas!
" Somos a Memória que não se Cala!"

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